Suzana Kahn Ribeiro (UFRJ): “A eletrificação exige uma infraestrutura cara”
Redução da emissão de gases de efeito estufa, diminuição do uso de combustíveis fósseis, diversificação de fontes de energia renováveis. Estes são alguns pontos de muitos presentes nas discussões sobre transição energética.
Um dos principais setores que precisa de definições é o de transportes. No Brasil, por exemplo, existe o debate da força que a frota elétrica poderia ter nos próximos anos. Mas, ao mesmo tempo, o etanol – um combustível renovável e com baixa emissão de carbono – já detém um mercado pré-estabelecido. Neste contexto, existe a opção de carros híbridos flex, que misturam a eletrificação com um motor que também funcionaria a base de etanol.
No meio do debate ainda há o RenovaBio, que visa incentivar o consumo de biocombustíveis. Os créditos de descarbonização, que sustentam o programa, entretanto, enfrentam o descontentamento das distribuidoras, que têm metas a cumprir.
Para falar sobre esse cenário e o papel dos biocombustíveis na transição energética, a professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Suzana Kahn Ribeiro, que também é presidente do comitê científico do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, já está confirmada entre os palestrantes da Conferência NovaCana 2023. O evento acontece em São Paulo (SP), nos dias 4 e 5 de setembro.
Ela será uma das participantes do painel “Etanol, mobilidade e políticas públicas”, ao lado do diretor do departamento de biocombustíveis do Ministério de Minas e Energia (MME), Marlon Arraes; da diretora da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), Symone Araújo; do CEO da União da Indústria de Cana-de-açúcar e Bioenergia (Unica), Evandro Gussi; e do presidente da Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE), Ricardo Bastos.
Ribeiro conversou com o NovaCana sobre o papel do etanol para a transição energética, a questão da eletrificação da frota e o mercado de carbono. Abaixo, confira a entrevista completa.
Estamos em um cenário de transição energética, em que muito se fala sobre trocar as principais matrizes para fontes renováveis. Você pode comentar como isso chega à questão da mobilidade?
Essa mudança que estamos vivenciando implica em várias questões. Uma delas é realmente a redução das emissões de carbono, que é fundamental, e também aquilo que temos chamado de transição justa. Ou seja, não é uma transição energética que poderá deixar outras pessoas, outros grupos, outras sociedades ou regiões, serem impactadas por conta de custos mais elevados, ou por dificuldades de acesso à energia, à mobilidade. Não dá para tratar exclusivamente com um olhar energético ou de carbono, é preciso considerar todas essas questões juntas. Dito isso, nós sabemos que haverá – e deve haver mesmo – um aumento da necessidade de suprimento de energia para mobilidade. Ainda tem uma parcela muito grande da população que não tem acesso à energia, por exemplo, e para aumentar esse suprimento, todas as alternativas são muito importantes. Eu não excluiria e nem apostaria em ter uma alternativa campeã. Acho que há uma flexibilidade muito grande de formas de energia, onde cada lugar vai ser mais ou menos barato e adequado.
Como você vê o papel do etanol neste contexto?
No caso específico do etanol, eu acho que ele ainda não ocupa um espaço, que é muito importante e que deveria ocupar, no transporte público. O etanol deveria estar sendo canalizado para o transporte urbano de ônibus etc., e junto com motores elétricos, a geração híbrida. Os veículos híbridos a etanol seriam uma solução muito importante para o transporte urbano. Os ônibus urbanos são extremamente poluentes e a poluição sonora também é um fator muito importante. Então, ter um ônibus elétrico gerado a partir da combustão do etanol, eu vejo que se tem um espaço muito importante também.
Mas não há perigo de o etanol perder espaço para os carros elétricos no setor de transportes?
Neste caso, eu acho que o etanol pode vir a perder para um carro elétrico pequeno, urbano, que tem vantagem sim. Mas até perder esse espaço há um período longo, porque existe toda uma frota, um sistema de distribuição de combustíveis líquidos. Então, eu acho que dá tempo, perdendo de um lado – que vai ser muito lento isso, não vai ser uma coisa tão rápida assim –, e ganhando de outro onde ele não está atualmente, que é no transporte público.
Em um artigo de 2018, você considerou que o Brasil precisa dominar a tecnologia para eletrificação. Houve uma mudança de posicionamento? Você ainda acredita que a eletrificação é o melhor caminho para diminuir as emissões de carbono no transporte?
Em alguns setores. No caso de veículo leve, eu acho que há aderência, independentemente das vontades de cada um. Me preocupa muito o Brasil querer investir em veículos a combustão se o mundo todo não está mais nesta direção, pois isso significa que vamos acabar com fábricas sucateadas e sem investimento. Foi o que aconteceu no passado com o carro puramente a álcool; todos os investimentos e as melhorias foram para o carro a gasolina, então tinha um carro a álcool sem todas as vantagens tecnológicas e toda uma série de modernidades que tinha no [carro] a gasolina. Foi quando surgiu o flex, que veio integrar as duas questões e que se tornou uma saída de grande sucesso. Agora, eu acho que não deveríamos ficar focados na questão do veículo elétrico, que está realmente crescendo no mundo com as baterias caindo muito de preço. Mas existem outros setores, aviação por exemplo, que vão precisar muito dos combustíveis líquidos por causa da infraestrutura. Tem também o transporte rodoviário, os ônibus e caminhões pesados – isso tudo, não vamos conseguir eletrificar com muita facilidade.
“Em segmentos como aviação e transporte de cargas, a bateria fica inviável, pois precisaria de muita energia. Acredito que o etanol deveria estar mais voltado para estas alternativas”, Suzana Kahn Ribeiro (UFRJ)
Considerando médio e longo prazos, qual é o espaço que os híbridos flex ou as células a combustível podem ter no mercado nacional?
Eu acho que tem um espaço muito grande para crescer, porque é o melhor dos mundos. Usamos o motor elétrico e, quando se tem dentro dele o combustível para gerar a eletricidade, reduzimos a sua dependência de ter o carregamento. Acho que deveríamos olhar nesta direção.
Como deverá ser moldado, na sua opinião, o futuro da mobilidade urbana no Brasil? Será possível abandonar completamente os combustíveis fósseis, ou ainda teremos uma parcela de uso?
Eu acho que depende do prazo. Os fósseis estarão aí por algumas décadas ainda. Mas eu vejo a mobilidade urbana muito mais eletrificada, com metrôs, VLTs [veículos leves sobre trilhos] e coisas do gênero usando energia elétrica. Agora, para os ônibus coletivos, eu vejo um uso potencial do etanol em híbrido, usando etanol e elétrico. Carros particulares, no longo prazo, eu acho que serão majoritariamente elétricos.
Quais seriam os principais passos a serem dados para fazer uma transição entre fontes de energia fóssil e renováveis no setor de transportes? O que está faltando para aumentar essa parcela de uso?
A infraestrutura. A eletrificação exige uma infraestrutura pesada, cara. Requer um aumento de oferta de energia elétrica também, então é preciso produzir mais energia elétrica para essa eletrificação. Fundamentalmente, falta infraestrutura. E, independentemente da infraestrutura, a tecnologia tem um papel muito importante, porque as baterias ainda deixam a autonomia um pouco desejar. Ou seja, são duas questões: a autonomia das baterias tem que aumentar e a questão da infraestrutura de recarga, de disponibilidade de energia elétrica. Não dá para comparar com o combustível líquido, que tem em qualquer canto. Por mais que a gente tenha um “problema de transporte urbano”, quando compramos um carro, também queremos viajar com ele, ir a outros lugares, poder revender – outras localidades às vezes não tem essa infraestrutura.
“Ter uma infraestrutura [de recarga para veículos elétricos], ainda mais em um país do tamanho do Brasil, é um dos maiores desafios”, Suzana Kahn Ribeiro (UFRJ)
Sobre os mercados de carbono: em 2018, você afirmou que o RenovaBio já nasceu defasado em relação às tendências mundiais no setor de transportes. Você acredita que o programa é capaz de alcançar seus objetivos quanto à queda nas emissões de CO2?
Eu acho pouco provável. O RenovaBio focou muito – e esta é a razão de eu ter escrito isso – na questão de manter o etanol da forma como ele já é utilizado. Foi apenas um incentivo para uso do biocombustível. Não houve nenhum avanço tecnológico, como esses que estou comentando. Neste sentido, eu acho que o programa não foi tão interessante assim. Para o mercado de carbono, o setor de transporte está em uma posição muito difícil porque, normalmente, para poder transacionar no mercado, tem que ter uma redução. No transporte, dificilmente vai ter qualquer redução, porque a tendência é aumentar cada vez mais. É um setor que já tem uma linha de base crescente e não iremos deixar de andar de carro para andar a pé ou de bicicleta. Mesmo quando falamos de eletrificação, temos toda uma cadeia que é intensiva em emissão de carbono, temos o aço, temos o pneu, até a manufatura do carro implica em emissões. Não é um setor em que vai ser fácil reduzir emissões.
Seriam necessárias alterações em sua regulamentação para o RenovaBio se fortalecer nesse sentido?
Eu acho que o RenovaBio tem a vantagem de favorecer um combustível renovável em detrimento de um fóssil. A proposta dele é esta, não é algo que vá realmente causar algum impacto nas emissões de carbono. Ele é ok para isto que se propõe; favorece um em detrimento do outro. Mas está longe de ser algo que vá reduzir efetivamente as emissões de carbono do setor de transportes, porque o que mais vai reduzir é passar para o transporte coletivo, não um carro individual.
Você foi indicada para o conselho da Petrobras, mas acabou não entrando na lista final. Dentro da petroleira, qual seria o seu posicionamento? Como você pretendia atuar na companhia?
A minha ideia seria focar na questão da transição energética. Eu acho que, não só a Petrobras, mas as grandes empresas de petróleo, precisam ter um olhar mais para o futuro para não acabarem tendo uma atividade que vai sendo desvalorizada ao longo do tempo. Não é para agora, naturalmente, mas não podemos apostar o futuro de uma empresa em algo que vai perdendo valor com o tempo.
Giully Regina – NovaCana